Desta vez faço minhas as palavras de
Gustavo Ioschpe. O texto abaixo veio ao
encontro de tudo em que acredito. Cada
vez menos me conformo em viver em uma sociedade que mente descaradamente e
utiliza a “Lei de Gerson” em seu dia-a-dia, sem se importar verdadeiramente com
o próximo, a não ser que seja para levar sua própria vantagem. Giselle Fernandes.
Com a palavra, Gustavo Ioschpe:
Educação
Gustavo Ioschpe
HANNAH ARENDT
- “Os maiores males não se devem àquele que tem de
confrontar-se consigo mesmo. Os maiores malfeitores são aqueles
que não se lembram porque nunca pensaram na questão” (Getty Images)
Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saía de casa para a escola numa manhã
fria do inverno gaúcho. Chegando à portaria, meu pai interfonou, perguntando se
eu estava levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou qual. “O moletom
amarelo, da Zugos”, respondi. Era mentira. Não estava levando agasalho nenhum,
mas estava com pressa, não queria me atrasar.
Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal moletom. Não estava
lá, nem em nenhum lugar da casa. Gelei. À noite,
meu pai chegou em casa de cara amarrada. Ao me ver, tirou da pasta de trabalho
o moletom. E me disse: “Eu não me importo que tu não te agasalhes. Mas, nesta
casa, nesta família, ninguém mente. Ponto. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
apenas um episódio mais memorável de algo que foi o leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai
era um obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade, honestidade, código de conduta, escala de valores, menschkeit
(firmeza de caráter, decência fundamental, em iídiche) e outros termos que eram
repetitiva e exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu certo. Quer dizer,
não sei. No Brasil atual, eu me sinto
deslocado.
Até hoje chego pontualmente aos meus compromissos, e na maioria das
vezes fico esperando por
interlocutores que se atrasam e nem se desculpam (quinze minutos parece
constituir uma “margem de erro” tolerável). Até hoje acredito quando um
prestador de serviço promete entregar o trabalho em uma data, apenas para ficar
exasperado pelo seu atraso, “veja bem”, “imprevistos acontecem” etc. Fico
revoltado sempre que pego um táxi em cidade que não conheço e o motorista tenta
me roubar. Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole, que arranjam um
jeitinho de fazer menos que o devido. Tenho cada vez menos visitado escolas
públicas, porque não suporto mais ver professores e diretores tratando alunos
como estorvos que devem ser controlados. Isso sem falar nas quase úlceras que
me surgem ao ler o noticiário e saber que entre os governantes viceja um grupo
de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez.
Sócrates, via Platão (A República, Livro IX),
defende que o homem que pratica o mal é
o mais infeliz e escravizado de todos, pois está em conflito interno, em
desarmonia consigo mesmo, perenemente acossado e paralisado por medos, remorsos
e apetites incontroláveis, tendo uma existência desprezível, para sempre
amarrado a alguém (sua própria consciência!) onisciente que o condena. Com o
devido respeito ao filósofo de Atenas, nesse caso acredito que ele foi
excessivamente otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais perto da
compreensão da perversidade humana ao notar, nos
ensaios reunidos no livro Responsabilidade e
Julgamento, que esse desconforto interior do “pecador” pressupõe um diálogo interno,
de cada pessoa com a sua consciência, que na verdade não ocorre com a
frequência desejada por Sócrates. Escreve ela: “Tenho certeza de que os maiores
males que conhecemos não se devem àquele que tem de confrontar-se consigo mesmo
de novo, e cuja maldição é não poder esquecer. Os maiores malfeitores são
aqueles que não se lembram porque nunca pensaram na questão”. E, para aqueles
que cometem o mal em uma escala menor e o confrontam, Arendt relembra Kant, que
sabia que “o desprezo por si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a
si próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação era que o homem
pode mentir para si mesmo”. Todo corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma
lógica para os seus atos, algo que justifique o porquê de uma determinada lei
dever se aplicar a todos, sempre, mas não a ele(a), ou pelo menos não naquele
momento em que está cometendo o seu delito.
Cai por terra, assim, um dos
poucos consolos das pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo tranquilo”.
Os escroques também! Se eles tivessem dramas de consciência, se travassem um
diálogo verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam optado por sua
“carreira” ou já teriam se suicidado. Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que
Freud chamou de superego: seguimos um comportamento moral porque ele nos foi
inculcado por nossos pais, e renegá-lo seria correr o risco da perda do amor
paterno.
Na minha visão, só existem, assim, dois cenários em que é objetivamente
melhor ser ético do que não. O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e
acredita que os pecados deste mundo serão punidos no próximo. Não é o meu caso.
O segundo é se você vive em uma sociedade ética em que os desvios de
comportamento são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções penais,
quer na forma do ostracismo social. O que não é o caso do Brasil. Não se sabe
se De Gaulle disse ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é um país
sério.
Assim é que, criando filhos brasileiros morando no Brasil, estou às
voltas com um deprimente dilema. Acredito que o papel de um pai é preparar o
seu filho para a vida. Essa é a nossa responsabilidade: dar a nossos filhos os
instrumentos para que naveguem, com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
axiomáticos, inquestionáveis. Eis aí o dilema: será que o melhor que poderia
fazer para preparar meus filhos para viver no Brasil seria não aprisioná-los na
cela da consciência, do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a ponto de incentivá-los a
serem escroques, mas poderia, como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a
essas questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar com atrasos, não
insistir para que não colem na escola, não instruir para que devolvam o troco
recebido a mais...
Tenho pensado bastante sobre isso ultimamente. Simplesmente o fato de
pensar a respeito, e de viver em um país em que existe um dilema entre o ensino da ética e o bom exercício da paternidade, já
é causa para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não porque ache que eles serão mais felizes
assim - pelo contrário -, nem porque acredite que, no fim, o bem compensa. Mas
sim porque, em primeiro lugar, não conseguiria conviver comigo mesmo, e com a
memória de meu pai, se criasse meus filhos para serem pessoas do tipo que ele
me ensinou a desprezar. E, segundo, tentando um esboço de resposta mais lógica,
porque sociedades e culturas mudam. Muitos dos países hoje desenvolvidos e
honestos eram antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um dia o Brasil há
de seguir o mesmo caminho, e aí a retidão que espero inculcar em meus filhos (e
meus filhos em seus filhos) há de ser uma vantagem, e não um fardo. Oxalá.
Veja Educação. 14/09/2013.
Gustavo Ioschpe (Porto Alegre, 1977) é um economista com graduação em Ciência política e em Administração
estratégica pela Wharton School, na Universidade
da Pensilvânia, e mestrado em Economia
internacional e Desenvolvimento
econômico, pela Universidade Yale, nos Estados
Unidos da América.
Ioschpe participa de
algumas das mais importantes organizações não-governamentais brasileiras
ligadas à área da educação. É membro fundador do Compromisso Todos
pela Educação e membro dos Conselhos do Instituto
Ayrton Senna3 , Instituto Ecofuturo (Grupo Suzano), Fundação Iochpe e Fundação
Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura. Como palestrante, atua no Brasil e no exterior,
já tendo proferido palestras em outros países da América Latina e na sede da
Unesco, em Paris.